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23 de set. de 2013

A Casa ' Sem Sono '.


A rua, em alameda, toda de prédios novos, com a montanha ao fundo, alta e frondosa, agradou-me logo de entrada.
Aprazível e quieta com seus jardins cuidados, fresca e trescalando docemente as silvas, realizava o meu ideal de serenidade bucólica: silêncio para o espírito e recreio para os olhos fatigados, como se achavam, dos rumores atordoantes da cidade da vista das avenidas e ruas, com o casario denso, sempre atravancadas de veículos e transeuntes.

Ali eram chilreios de pássaros, ziar de insetos, de longe sons dormentes de pianos. Àquela hora não havia viva alma. Os meus passos soavam estrepitosos.
Guiado pelo anúncio fui ter à casa. A primeira impressão foi de espanto.
Através do gradil escalavrado avistei o terreno que fora, outrora, jardim. Todo era mato, de erva alta, recortado por uma vereda sinuosa. Mamoneiros, carregados de frutos híspidos, fechavam uma das passagens laterais. Os muros, cobertos de trepadeiras selvagens, tinham o aspecto intonso de altas sebes.
Abri o portão e foi um trabalho para levá-lo dentro, escarvando a terra. Caminhando era-me preciso parar, por vezes, para afastar galharias espinhosas, ramos; o solo úmido era balofo; em certos meus pés topavam em bordos de antigos canteiros afogados pela vegetação agreste.
A casa, cuja pintura externa descascava, era triste, com a varada enxadrezada em ladrilhos, alguns já deslocados, oscilando ao piso. Para abrir a porta tive de forçar a chave, martirizando os dedos. A muito custo consegui dar volta e, com forte impulso, fazendo crepitantemente a madeira, abri-a, recebendo no rosto úmido bafio, hálito nidoroso da casa despertada.
Que esforço para abrir as janelas, todas perras! Conseguindo luz bastante para o exame, pus-me a percorrer os aposentos amplos.
O soalho começava a apodrecer em certos pontos, fendendo-se em frinchas; a barra cobria-se de tisne de umidade; manchas esparralhavam-se nas paredes. Toda a casa tresandava a bolor. Entretanto, com o sol que entrava pelas janelas, que eu conseguira abrir, pareceu-me alegre.
Pus-me a notar a construção — havia até capricho: o salão nobre, pintado a óleo, com floreios de estuque, era rico; a sala de jantar, com o teto de madeira envernizada, frisa para cerâmica e louça, soalho encerado; ampla cozinha, banheiro magnífico.
Os dormitórios vastos e arejados e, embaixo, dois salões nos quais logo imaginei instalar-me, trabalhando em um e arranjando em outro a biblioteca.
Ainda que tal “tapera”, para tornar-se habitável, exigisse obras de certa monta, decidi-me falar ao proprietário, propondo-lhe um acordo razoável. O ponto agradava-me e os cômodos satisfaziam-me. Com algumas reformas e substituição de madeiramento, pintura, papel novo em certas peças, e refeito o jardim, ficaria um paraíso.
No terreno ao fundo, que percorri, espantando lagartos, havia árvores pomareiras, algumas em flor. Uma delícia para as crianças.
Ao tornar com a chave ao taverneiro da esquina, informei-me das condições do aluguel e da residência do proprietário.
Junto ao poste, à espera do bonde, compunha eu mentalmente os arranjos da casa, quando ouvi meu nome em exclamação alegre. Voltei-me.
Era o Dimas, antigo colega de Academia, que abandonara o curso no terceiro ano para dedicar-se ao comércio, onde chegara a constituir uma das mais importantes firmas, decaindo, porém, com sucessivos desastres durante a guerra. Em todo o caso sempre lhe ficara o bastante para viver folgado, e até com alguma representação.
— Tu por aqui, no subúrbio! Que isto? Amore…?
— Casa, meu amigo, suspirei. Ando à procura de casa. A minha está a cair e o senhorio, todos os meses, aumenta-me uns tantos por cento. Demais, quero justamente o que me oferece esta rua — largueza e silêncio. Achei aqui uma casa, que me convém. Está um pouco estragada, mas com alguns consertos ficará um brinco.
Dimas recuou encarando-me d’olhos muito abertos, com tal espanto na fisionomia que, deveras, me impressionou.
— Quê! Naquela casa! tu!?
— Então? Que tem?
— Que tem? Ora essa! Bem se vê que não frequenta o bairro. Sabes como é conhecida aquela casa, em que morei uma semana, uma semana! Entendes? E fincou o indicador. É conhecida pelo nome de casa “sem sono”. Nunca ouviste falar?
— Não.
— Pois os jornais já trataram do caso, até com fotografias.
— Não vi. Mas casa “sem sono” por quê? Assombramentos, fantasma…?
— Não. Apenas isto: ali não se dorme.
— Como não se dorme!?
— É como te digo. O sono não entra naquela casa. Passei uma semana. Pois meu caro, nem eu, nem pessoa alguma da família, até animais, ninguém conseguiu pregar o olho.
— Por quê?
— Sei lá. Dizem que é a “sina” da casa.
— Lenda.
— Lenda ou não, a verdade é que eu posso dar testemunho do fato. Essa casa pertencia a uma viúva doente, foi, por ela, hipoteca a um tal Silva, tipo de avarento que, segundo é voz pública, fez a fortuna à custa de sangue e lágrimas. Esperto e trapaceiro, como todos os de sua laia, enredou a pobre senhora em tais dificuldades que acabou ficando-lhe com a propriedade. Começou, então, o fadario do prédio. O primeiro que o habitou foi um engenheiro da Central. Não esteve ali quinze dias. Vieram outros. O que mais se demorou não chegou a completar um mês. O último fui eu. Resisti uma semana. Mudei-me há quase dois anos e ela está vazia até hoje.
— Mas, afinal, que viste? Por que te mudaste?
— Ora, porque… Porque ninguém dormia. Passávamos as noites em claro. A principio atribuímos ao cansaço dos trabalhos de mudança e arranjos da casa. Passaram-se dias e a insônia persistiu. Recorremos a calmantes, consultamos médicos. Nada!
Ah! meu amigo, não imaginas o suplício de toda uma semana de vigília, todos acordados, desde minha mãe, com seus oitentas anos, a andarejar arrastadamente pela casa, até o meu caçula de oito meses, resmungando, choramingando no berço. Os próprios animais — era o cão no jardim farejando os canteiros, a uivar lamentosamente, era os pássaros nas gaiolas.
Às vezes deitávamo-nos, com a casa toda apagada. De repente ouvíamos passos, vislumbrávamos claridade: era alguém que levantara, acendera a luz e andava à toa, a fazer sono. Pouco depois estavam todos de pé e víamos nascer a manhã. Sabes lá que é isso!
Sentir a gente o sono em volta de si, todas as casa sem silêncio, a rua inteira quieta, a natureza adormecida e nós… É horrível! Podes compreender que, em noite plena, escura, haja algum ponto iluminado pelo sol? pois era a impressão que tínhamos, impressão de que o dia não nos deixava, sempre conosco, sempre!
Anoitecia. Pouco a pouco ia-se fazendo o silêncio, fechavam-se as casas. De quando em quando um rumo longínquo e as vozes noturnas: coaxos de sapos, latidos de cães, até o primeiro cantar dos galos, o amiudar dos poleiros, os ruídos espertos da madrugada, a claridade, o sol… E nós com a luz lívida das lâmpadas, acordados, olhando-nos sem compreender aquele desvelar que nos consumia.
Ao cabo de seis dias parecíamos espectros. Andávamos aos cambaleios, tontos, atordoados, mas sem sono. Minha mãe que descobriu o mistério e, uma manhã, denunciou-o: “O sono não entra nesta casa. Não entra. É alguma maldição”. Ainda insisti dois dias. Nada. Então veio o pavor. Uma tarde — e foi a última — eu fui para a casa de um cunhado.
— E dormiste?
— Se dormi!? Dormimos todos, quase vinte horas, e, se não nos despertassem, creio que teríamos enfiado dois dias e duas noites. Estávamos atrasadíssimos. Só lá tornei para fazer a mudança. E eis porque uma casa como aquela, neste tempo, nesta rua, e por preço relativamente módico, está vazia há dois anos. É que todos a conhecem, é a casa “sem sono”, one não se dorme.
— E a que atribuis essa história?
— Sei lá! Essas coisas não se explicam. Olha o bonde. Vamos. É pena que não venha ser meu vizinho, mas por tal preço, não quero. Isso não! Sem sono não se vive e ali nunca o terias, juro!

(TAVARES, Braulio. Páginas de sombra: contos fantásticos brasileiros. Rio de Janeiro: Casa da palavra, 2003. p. 70-74.)

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